Fui introduzido por mero acaso a
um senhor que algo me deu de repensar em uma curta conversa, isto porque se
mostrou imune à edacidade com a qual Cronos devora os seres humanos. Não que
queira dizer que ele escaparia à morte ou às intempéries; mas antes intento
relatar a omissão do senhor perante o passar do tempo.
É
claro que a mensagem por trás da alegoria mitológica em que Cronos devora seus
filhos é a de que não se resiste a esse deus atroz, nem mesmo sua prole. Dessa
maneira, condenados a viver com os dois olhos sob serventia desse medo – um para
ver o que se passou e outro para o que ainda está por vir -, qualquer mero
movimento que se nota advindo dessa deidade é o suficiente para causar as
maiores e duradouras ânsias. O relógio,
nesse cenário, é o maior alvo de confronto humano.
Pois
qual não foi minha surpresa quando ouvi o que estou prestes a narrar. Eu
cheguei na faculdade mais cedo na última sexta-feira, e visto que a aula ainda
se demoraria, sentei-me em um banco para ler e esperar. Coloquei o celular para
despertar 5 minutos antes da aula começar para me lembrar do meu compromisso.
Lá, sentado no banco, estava um senhor de rosto redondo, escanhoado e plácido.
Me cumprimentou quando sentei, porém não fiou assuntos.
No
decorrer dos minutos, entretanto, notei um fato que atraiu minha visão
periférica: ele olhava o relógio de pulso constantemente. Quando o percebi, o
que mais me desassossegou foi a serenidade que mantinha em sua feição, e, ainda,
a ausência de olhares para os lados como quem algo espera. Depois que esse fato
repetiu-se incontáveis vezes em cerca de cinco minutos inqueri:
-
Está aguardando alguém? Posso me retirar, se necessário. – Menos por educação,
mais por curiosidade.
-
Não, meu caro, tudo bem. – Soou com sorriso. – Não estou esperando nada.
-
Precisa de ajuda com algo? – Tentei continuar a conversa.
-
Não, jovem. Pode ficar bem.
-
Desculpe-me - iniciei por não me conter –, mas não pude deixar de reparar que o
senhor a todo momento olha o relógio. Está esperando algum evento?
-
Ah! Isso? – E riu. – Isso não é nada. É só que quero olhar que horas são no
momento.
-
Sim - respondi tentando conter minha ironia -, supus. Mas tem algum
acontecimento marcado que você precisa de ajuda para achar, chegar em tempo?
-
Agradeço à preocupação, meu amigo, porém não será necessário. Como eu disse,
olho o relógio para saber que horas são.
Franzi
o cenho.
-
Sim, imagino que o seja, afinal é o motivo pelo qual todos têm relógios.
-
Não. – Respondeu mais gravemente. – As pessoas consultam os relógios para saber
quanto tempo falta ou quanto tempo se passou, não para saber as horas. Não é o
meu caso.
Enrijeci.
Não soube o que lhe responder. Tentei pensar o que aquilo significava. Devo ter
demorado mais tempo do que eu imaginei, pois ele interveio logo:
- Se estamos atrasados ou tomando conta de
algo que demanda um tempo exato, olhamos as horas para saber quanto tempo se
passou do nosso ponto de referência; se estamos aguardando algo futuro, olhamos
as horas para saber quanto tempo falta. Eu, como já disse, olho as horas para
saber que horas são.
Meus
sentimentos foram mistos: nunca havia parado para imaginar a primeira
proposição nem conseguia conceber o motivo pelo qual alguém olharia as horas
unicamente para sabe-las.
-
Por que o senhor faz isso? – Foi o que consegui dizer.
-
É minha forma de fazer o momento me apetecer, de dar identidade aos segundos.
Cada minuto tem o seu próprio caráter, que não lembramos ao pega-lo unicamente
como referência de outro.
-
Mas pensar no tempo não é perde-lo? Quero dizer, não se gasta tempo refletindo
sobre ele?
-
Não se trata de refletir a respeito, meu rapaz, e sim de saboreá-lo como a um
cardápio novo, pois esse tempo nunca é igual ao que se passou.
-
Não... – olhei para o nada – compreendo.
-
Reflita, meu rapaz. Da próxima vez que olhar seu relógio tente achar a marca
idiossincrática do momento, não se atenha aos eventos anteriores e ulteriores. –
E se levantou, calmamente, como quem não deve nada. – Tenho que ir, quero começar
a fazer o mesmo com o espaço.
E
se afastou a curtos passos, me deixando em estupor contemplando sua bonança.
Meu
celular despertou.
Eram
7:55 que eu nunca voltaria a ver.
Vinícius Figueiredo
Vinícius Figueiredo