Desde que cheguei na cidade atual, têm-se montado inúmeras crônicas em qualquer parte do meu cérebro
responsável pela criatividade. Sem dúvidas o ar, as pessoas, a densidade
populacional, e, é claro, a falta de alguém conhecido próximo influenciaram um estado
de curiosidade com esse novo mundo, nunca tido por mim até então na cidade, e essa condição bombardeou minha mente com cápsulas de crônicas que eu
nunca havia concebido.
Embora eu tenha dito que muitos
desse gênero literário apareceram para mim, eu não levei nada ao papel (papel
virtual); talvez por falta de tempo – e por uma certa preguiça, confesso -, e
por subestimar os temas e minha habilidade como cronista para montar algo que
conseguisse descrever a minha empolgação inicial.
No entanto, um fato hoje (quase
três semanas de minha estada aqui) me aconteceu que chamou-me a atenção
incrivelmente: eu enxerguei uma criança!
Digo “enxerguei”, pois é óbvio
que antes eu havia tido a oportunidade de passar meu olhar por uma criança, mas
nunca como hoje; por isso, a despeito de incontáveis vezes eu ter visto
crianças, não havia de fato enxergado.
O fato aconteceu quando eu
voltava da faculdade e enquanto andava pela Avenida Boaventura, passei em
frente a um cuidado Jardim de Infância, que provavelmente se encontrava em
tempo da saída das crianças. Eu não vi nenhuma criança saindo efetivamente do local, mas vi a poucos metros do portão uma
mãe que levava uma pequena saltitante de marias-chiquinhas igualmente inquietas
de mãos dadas com ela.
Esse episódio me chamou a atenção
porque percebi que eu havia apenas visto e estudado coisas unicamente que
focavam na minha formação: resolvia questões de assistência estudantil,
xerocava materiais, assistia a aulas, via professores austeros cascateando
conteúdos para anotarmos rapidamente, fui atrás de iniciação científica.... mas
eu não havia visto nada – se vi, não percebi – como aquela cena: uma menina
vivendo e pulando pelo simples fato de viver e pular.
Eu não percebi a oportunidade que
estava tendo de aproveitar o novo
como algo para fruir, mas sim como algo para analisar e julgar (algo não muito
diferente do que aprendemos nas escolas e universidades); também havia me
esquecido do viver pelo simples fato de estar vivo!
Adoro
ler Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), mas esqueci-me de versos
essenciais dele:
“Não há
tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,
Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Lendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...”
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,
Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Lendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...”
Esqueci-me de ter as
crianças por minhas mestras: a criança vê tudo como incrível – do latim incredibilis, in, no sentido de negação,
credibililis, crível ou possível de
crer -, afinal o mundo é realmente algo fascinante e notoriamente organizado do
ponto de vista orgânico. É comum você estar com uma criança e as perguntas “Por
que? Como?” aparecerem constantemente, e me pesa ver pais que não notam esse
fato por não darem a devida importância a essas perguntas, já que eles já não
se impressionam com nada. E por não se impressionarem com isso, adultos tentam
achar coisa sobre-humanas para seu intelecto, como bem lembrou o pai do garoto
Hans-Thomas no livro O Dia do Coringa: “O fato de nos aferrarmos com tanta
voracidade ao ‘sobrenatural’ pode ser explicado por um tipo raro de cegueira,
que não nos permite enxergar o maior dos mistérios: o fato de que existe um
mundo”
Não
digo que esqueci por completo disso; hoje mesmo fui lembrado. Durante a aula de
neuroanatomia, minutos antes da cena da garotinha, fiquei perplexo ao entender
como funciona todo o transporte de informação dentro do nosso corpo (na minha
opinião é mesmo algo sobrenatural!).
Talvez
encarar o mundo dessa forma seja o que nos falta em algum momento. Carece-nos
momentos em que paramos de nos preocupar com o que há de vir e o que pode estar
além de nós para, ao invés disso, prestar atenção no corriqueiro, porém
complexo mundo enigmático e inesgotável em que vivemos.
No
texto Milagres de Mário Quintana ele sonha com
“Dias mágicos…
Em que os burgueses espiam,
Através das vidraças dos escritórios,
A graça gratuita das nuvens…”
Em que os burgueses espiam,
Através das vidraças dos escritórios,
A graça gratuita das nuvens…”
Talvez
seja o único milagre que se tem conhecimento de o ser não por algo
sobrenatural, mas que ainda assim se mantém sobre-humano...
Escrito em meados de 2015
Vinícius Figueiredo